Texto: Tamires Alês

As cozinhas profissionais, em todo o mundo, sempre foram um ambiente de notória predominância masculina. Entretanto, esse cenário está mudando. (Ainda bem!). Em diversos países pelo mundo, e no Brasil, a presença feminina nas cozinhas profissionais é crescente (embora, em muitos casos, com uma realidade de salários ainda menores do que dos homens). Até mesmo em searas da gastronomia, historicamente associadas aos homens, como a gastronomia oriental, em especial, a japonesa.

Há alguns anos, era inimaginável mulheres manipulando sushis e sashimis, isso porque era alardeado que as mãos femininas eram muito quentes, dentre outras razões, o que poderia atrapalhar na preparação dos sushis. Argumentado já revogado por diversos especialistas, ou seja, era uma teoria baseada só no preconceito mesmo.

No Japão, a chef Yuki Chizui está tentando mudar a cabeça dos clientes, e de seus pares, e anda quebrando paradigmas com seu restaurante Nadeshico Sushi, o primeiro e único restaurante do Japão onde todos os chefs e funcionários são mulheres. Na opinião de Chizui, por serem mais comunicativas e dispostas, as mulheres são perfeitas para serem chefs, quebrando o estereótipo que existe dentro deste meio.

Em terras brasileiras, as cozinheiras de origem oriental são mais presentes nos izakayas (típico boteco japonês) e nos restaurantes de katei ryori (comida caseira). Poucas, no entanto, chegam à posição de chef. Uma das raras exceções é a inteligente e criativa, chef Telma Shiraishi, do restaurante Aizomê, localizado em uma casa discreta, e (pasmem!) sem placa na entrada, no bairro dos Jardins.

Vencer preconceitos e se provar como uma grande chef da culinária tradicional japonesa é algo que Telma tem feito nos últimos 11 anos, desde quando o restaurante foi inaugurado. “Não foi fácil. Quando se é mulher você tem que provar duas vezes, o nível de exigência é muito mais alto”, revela.

Mesmo gostando de cozinhar desde pequena e crescendo em meio a uma família em que os sabores, temperos, experimentações e grandes almoços eram frequentes, Telma percorreu outros caminhos antes de adentrar ao mundo gastronômico.

Primogênita da família, a chef, que passou boa parte da infância e da adolescência em Paraibuna, no interior de São Paulo, cursou a faculdade de medicina da USP. Depois de três anos, resolveu investir em seu lado mais artístico e mergulhou no universo da moda. Foi assistente de Fause Haten, um dos grandes estilistas emergentes, em uma época que a moda despontava em São Paulo.

“Fiquei dois anos trabalhando com o Haten, depois casei, tive minha primeira filha, e os dois mundos não conversavam mais. Então, fiquei uns 4 anos na minha fase mãe, me dedicando a minha filha e a minha família”, lembra.

Aos poucos, Telma foi migrando para a cozinha, começou com jantares e coquetéis para amigos, eventos, uma agenda que dava para conciliar com a de mãe. “Comecei a fazer cursos de culinária, mas sempre fui autodidata, aprendi muito na raça mesmo”, relata. Até conhecer o chef Shin Koike e inaugurar o Aizomê, em 2007. “Nossa ideia era abrir um restaurante com uma proposta diferenciada, focada na culinária japonesa autêntica, voltada para o público japonês”, conta. “Aos poucos, os brasileiros começaram a descobrir a nossa culinária, e hoje o Aizomê é frequentado por todos os públicos”, completa.

E já faz mais de seis anos que Telma está à frente do restaurante sozinha, já que o chef Koike foi desenvolver outros projetos. “Quando assumi a casa foi a fase mais complicada, eu era mulher, e não era japonesa, só descendente. Sofri preconceito de todos os lados, os clientes olhavam com desconfiança, meus colegas de profissão não acreditavam no meu sucesso, foi todo um processo”, recorda. “Acho que deu certo porque eu consegui manter o respeito pelas tradições, pelas técnicas, pelos ingredientes, sabores e aromas”.  

Sua cozinha alia as técnicas típicas da terra do sol nascente com um trabalho criativo, delicado e autoral. Sempre com foco nos ingredientes frescos e sazonais, respeito ao produto e ao produtor, e a delicadeza de não interferir no produto, de trazer os sabores mais puros de cada ingrediente.  

“Tenho a liberdade de fazer um trabalho totalmente autoral. De experimentar, de criar, a cozinha do Aizomê é como um laboratório, os pratos têm o meu jeito”, explica. “Aqui trabalho com o ingrediente do dia, se você vem aqui hoje vai comer algo, que amanhã, provavelmente, não terá mais”, detalha.  

Mesmo tendo um cardápio com pratos fixos, a estrela da casa é o omakase, ou menu degustação, com uma sequência de 7 pratos criados pela chef. “No omakase trabalhamos com uma variedade de preparações, sempre temos algo grelhado, cozido, frito, sushi, e finalizamos com a sobremesa”, enumera.

Finalizar uma refeição com doce é um diferencial em uma cozinha tradicional japonesa, já que no Japão não entra sobremesa em uma refeição. “Porém, estamos no Brasil, tem que ter um doce”, brinca a chef. “Sigo sempre uma linha mais natural, menos doce, com sutileza de sabores e uso de ingredientes japoneses como yuzu, gengibre, matchá, missô e muitas frutas”, enaltece.  

Hoje, Telma vê seu esforço e talento amplamente reconhecidos, não só pelos seus clientes fiéis, mas como em toda a sociedade. Uma bela prova que seu trabalho e seu nome estão em destaque dentro da gastronomia foi o convite para comandar a cozinha do Consulado Geral do Japão em São Paulo. Em pleno ano que se comemora os 110 anos da imigração japonesa no Brasil – com visita de membros da família imperial japonesa, empresários e políticos japoneses – é a culinária de Telma que estará em evidência. “Quando me convidaram, percebi que meu trabalho estava na direção correta e que todos esses anos de dedicação e estudo fizeram sentido”, ressalta. “É um grande reconhecimento e uma grande responsabilidade, já que sou responsável pelos cardápios de todos os eventos, banquetes e recepções do consulado”, completa.

Telma também tem sido exemplo para muitas mulheres que querem seguir a carreira dentro de uma cozinha profissional. “Eu acredito que a participação das mulheres na culinária oriental ainda tem muito a crescer. E sem querer eu estou abrindo caminhos para essa nova geração. Muitas mulheres vêm aqui procurando um ambiente de trabalho mais favorável. Tanto que, atualmente, na minha cozinha, tem muito mais mulheres”, finaliza.

Preservando a culinária coreana

Outra chef de destaque no meio oriental é Regina Hwang. Foi vestida com trajes típicos coreanos, que ela recebeu a reportagem da Mundo Ok para contar a sua história com a gastronomia.Nascida na Coreia, Regina chegou ao Brasil na década de 1970, com 10 anos. “Eu sempre fui do universo das artes, por 20 anos atuei com a minha companhia de dança tradicional coreana, até resolver seguir uma vocação de família: a gastronomia”, conta. “Minha família tinha fábrica de doces na Coreia, quando chegamos ao Brasil, minha mãe abriu um restaurante coreano no Bom Retiro, que funcionou por muitos anos, sempre estive imersa nesse universo”, afirma.Mas, Regina não queria abrir mais um restaurante coreano no Bom Retiro, reduto dos coreanos no Brasil. “Minha ideia era justamente a oposta, eu queria apresentar a culinária coreana para a sociedade brasileira, para um público variado. Por isso, abri minha casa no bairro da Liberdade, que recebe diariamente turistas de todo o mundo”, explica. Foi assim que nasceu, em 2009, o Portal da Coreia.

O plano deu tão certo que, atualmente, Regina é uma das principais divulgadoras da gastronomia coreana em terras brasileiras. Além dos pratos típicos que serve em seu restaurante (se for conhecer aos finais de semana, prepare-se para as filas), ela ministra cursos, faz eventos, coquetéis, recepciona artistas coreanos, especialmente as jovens bandas de K-Pop, e realiza até casamentos.

“No começo foi muito difícil, porque a culinária coreana não era muito difundida no Brasil, as pessoas ficavam com receio de experimentar, achavam que era tudo muito apimentado. Mas, temos diversas receitas, muitas sem nenhuma pimenta”, esclarece.

Com o tempo, brasileiros e estrangeiros de várias nacionalidades, se encantaram pela riqueza de sabores, aromas e ingredientes que formam a tradicional culinária da Coreia. “Nossa gastronomia é rica em raízes, brotos, legumes, verduras, cogumelos, carne de porco, frango, e claro, arroz e conservas, em especial o kimchi (conserva de hortaliças, principalmente, a acelga, com diversos condimentos típicos). Kimchi e arroz não pode faltar na mesa coreana”, ensina.

Na cozinha de Regina os pratos tradicionais dão o tom, entre eles o bulgogi, típico churrasco coreano (finas fatias de carne com tempero suave à moda coreana, fatias de shiitake, cebola e cebolinha); o bibimbap, risoto à moda coreana, ou mexidão (arroz branco cozido na panela de pedra, cenoura, abobrinha, broto de soja, espinafre, cogumelo, shiitake, carne moída, broto de samambaia, raiz de campânula e ovo); e ensopados, como o sundubu chige (ensopado de tofu, vôngole, mexilhão, lula, cebolinha e ovo).

Assim como no Japão, na Coreia os chefs mais renomados também são homens. “As mulheres são mais presentes nos restaurantes de culinária caseira, mais tradicional. A cozinha profissional ainda é dominada pelos homens”, revela. “Aqui no Brasil, a maioria dos restaurantes coreanos se caracteriza por ser uma culinária mais tradicional, geralmente, feita por mulheres. Já os chefs mais jovens, os da nova geração, percebo que a maioria é homem”, completa.

“As mães estão passando os ensinamentos tradicionais da culinária coreana para os filhos, que vão estudar gastronomia e começam a fazer criações mais modernas e contemporâneas com as receitas tradicionais”, detalha. “Eu mesma tenho quatro filhos, apesar de não atuarem na área, todos gostam de cozinhar, uma até fez Gastronomia”, conta. “Acredito que daqui alguns anos teremos mais chefs especializados na gastronomia coreana, e os homens estarão dominando esse cenário”, finaliza.

Sabores asiáticos modernos

Mais voltada para a culinária chinesa, mas desenvolvendo pratos com toques e sabores das gastronomias japonesa, coreana e tailandesa, Jiang Pu, do Chi Restaurante, é outra mulher de destaque na culinária oriental do Brasil.Chinesa de nascimento, mas com o coração cheio de tempero brasileiro, Jiang foi terceira colocada da segunda temporada do programa culinário da Band, MasterChef Brasil. “Sempre gostei de cozinhar, mas para meus pais ser cozinheiro não era uma profissão muito legal, por isso me formei em Estatística na USP. Trabalhei um ano na área e resolvi seguir minha verdadeira vocação”, lembra.

Para Jiang, os homens são maioria na cozinha profissional, “pois eles conseguem se dedicar mais a profissão. Nós mulheres, se temos filhos, temos que nos dedicar aos nossos bebês, as nossas famílias, e fica complicado conciliar com a longa jornada de trabalho em um restaurante”, ressalta.  

“Eu mesma, engravidei depois do programa (MasterChef) e esperei minha filha crescer um pouco para poder realizar o sonho de inaugurar meu restaurante”, conta. “É difícil ser mãe e chef. Atualmente, ela tem dois anos e mesmo assim preciso de uma rede de apoio. Minha mãe me ajuda bastante e meu marido também, é ele que cuida dela aos sábados, quando estou no Chi. Só tenho os domingos para me dedicar a minha família”, completa.

Pablo Sobral

Segundo ela, a cozinha chinesa também afasta um pouco as chefs mulheres. “A cozinha chinesa é bem pesada. Não é fácil trabalhar com uma panela de ferro fundido muito pesada (wok), em uma temperatura muito alta”, comenta. “No Chi, 80% dos currículos que recebo são masculinos. Mas, eu acredito que esse cenário vai mudar, que a tendência é uma presença cada vez maior das mulheres na gastronomia profissional”, opina.

No Chi, Jiang apresenta um conceito diferenciado de gastronomia chinesa. “Eu trago o prato tradicional chinês com uma leitura mais jovem, mais contemporânea”. A casa é inspirada nos botecos asiáticos, os famosos “izakaya”, com petiscos e pratos para compartilhar. “As receitas têm inspiração asiática, mas são adaptadas ao paladar do brasileiro, que dificilmente comeria uma verdadeira comida chinesa”, explica a chef.  

“O cardápio muda bastante, sempre trago novidades de acordo com os produtos da estação, aproveitando o melhor de cada ingrediente na sua melhor época”, enaltece. “Mas, algumas receitas são fixas como o guioza, um dos mais pedidos. O nosso é todo artesanal, uma receita da minha família. É recheado com carne de porco e nirá, e grelhado com água e óleo”, detalha.

Pablo Sobral

O Jing Du Pai Gu (ribs ao estilo da casa, com molho agridoce acompanhado de salada de pepino e molho de gergelim) também faz sucesso. Na ala dos doces, a casa conta com duas sobremesas francesas com toques asiáticos. Crème Brûlée de pimenta sichuan e Choux de matchá com calda de tamarindo.

Além de tocar o restaurante, Jiang também dá aulas e cursos de gastronomia, ensinando o preparo dos famosos dim sum (dumpling), delicados pasteizinhos fritos ou cozidos no vapor.

Para os jovens que desejam ingressar no universo da gastronomia, Jiang deixa um recadinho: “Tem que amar muito, porque não é uma profissão fácil, precisa de muita dedicação e empenho”, finaliza.

Conheça os restaurantes dessas gigantes da culinária oriental

Aizomê
Alameda Fernão Cardim, 39 – Jardins
Tel.: 11. 3251-5757
www.aizome.com.br
facebook.com/restauranteaizome

Portal da Coreia
Rua da Glória, 729 – Liberdade
Tel.: 11. 3271-0924
www.portaldacoreia.com
facebook.com/portaldacoreia

Chi Restaurante
Rua Cônego Eugênio Leite, 448 – Pinheiros
Tel.: 11. 3062-7350
facebook.com/ChiRestaurante