Espiritualidade: Culto aos antepassados

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Comum entre as famílias orientais, a reverência aos ancestrais é um rito primitivo, que se mantém vivo até hoje

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Tamires Alês / Fotos Divulgação/Reprodução

Nas famílias orientais e, principalmente, nas japonesas é uma tradição milenar o culto aos antepassados, as celebrações de homenagem póstumas e a reverência aos ancestrais. É um rito tão antigo, que existe antes mesmo de alguma religião existir nesses países.

“Acredita-se que essa tradição do culto aos antepassados, existe antes mesmo do Japão se unificar, quando ainda era dividido em clãs, os Ujis, já que um dos elementos centrais desses clãs era justamente o culto a um ancestral comum, o Ujigami”, explica o antropólogo e coordenador do curso de Letras Japonesas da Universidade Federal de Brasília, Ronan Alves Pereira.

O especialista explica, que quando o Budismo entrou no Japão, por volta do século VI, se misturou as tradições nativas do País, e acabou assumindo o lado das cerimônias funerais, por isso, que também é conhecido como a “Religião dos Mortos”.

O mesmo aconteceu, segundo o antropólogo, com países como China e Coreia, que também tinham em suas tradições nativas o culto aos antepassados, e algumas religiões como o confucionismo, acabaram assimilando esse rito.

No Japão, explica Pereira, é possível destacar três ritos relacionados ao culto aos antepassados, ritos esses ligados ao budismo: “As missas memoriais, cerimônias realizadas nos templos budistas (detalhes no box); o culto diário realizado em casa, diante do Butsudan, o oratório budista; e o Obon, o feriado de finados dos japoneses”, enumera.

“No Butsudan as famílias fazem suas orações diárias em memória e reverência aos antepassados e realizam oferendas, geralmente de arroz, chá, em que o primeiro preparado na casa é oferecido ao ancestral no oratório, assim como frutas frescas da estação, flores, além de acender o senkô, (incenso)”, detalha o antropólogo. “No Japão, a sucessão é patrilinear, ou seja, as famílias japonesas seguem a linha paterna. A mulher passa a pertencer à família do marido, e o culto é feito para os antepassados da família do marido. Assim como é o filho mais velho que herda o butsudan e recebe a incumbência de cuidar do oratório dos pais”, completa.

Mas, essa tradição patrilinear tem mudado em algumas religiões mais novas, que surgiram no final do século XIX, como a Reiyukai, que também existe no Brasil, na cidade de São Paulo. “Essas religiões também têm como ensinamento central o culto aos antepassados, mas ela tira um pouco das mãos dos monges essa função e prega que todas as pessoas devem cultuar os seus ancestrais diariamente, e para os dois lados da família”, revela Pereira.

Já o Obon, é o segundo maior feriado nacional do Japão – só é menos comemorado que o Ano Novo. “Nessa data, celebrada em agosto, no verão japonês, as pessoas costumam voltar para as suas cidades de origem e visitar os parentes, além de realizar missas e visitar os túmulos dos antepassados”, explica. Segundo Pereira, é nessa época também que acontecem os matsuris, festivais com danças, como o Bon Odori ou Dança de finados – dança circular realizada por toda a comunidade para homenagear os antepassados. Tradições que também se mantêm na comunidade nipo-brasileira.

“Com a modernização da sociedade japonesa e a mudança nas estruturas familiares, hoje composta basicamente pelos pais e um ou mais filhos, a tradição do culto aos antepassados como era realizado antigamente tem diminuído, mas ainda é presente entre as famílias. O mesmo acontece no Brasil, às gerações mais novas, muitas vezes, nem sabem como realizar exatamente esses cultos, ou acabam mudando de religião e deixando de lado esses costumes. Se essas tradições não forem cultivadas, podem, com o tempo, acabar se perdendo”, finaliza o antropólogo.

Religiosidade X EspiritualidadeCapa2

 Em Okinawa, província localizada ao sul do Japão, o culto aos antepassados está ainda mais arraigado na sociedade, e se mantém firme e presente até hoje. Tradição que também acompanha os imigrantes okinawanos que vivem no Brasil.

 “A reverência aos seus ancestrais é um costume primitivo do povo okinawano e a sua principal atividade espiritual. Costume que fortalece a sua espiritualidade e a sua existência”, ressalta Shinji Yonamine, profundo conhecedor da cultura e das tradições okinawanas.

 Segundo ele, no Japão praticamente todas as religiões, mantém a reverência aos seus ancestrais, representado por uma instituição religiosa. Okinawa até mesmo na modernidade consegue manter os seus costumes primitivos, por meio da reverência aos ancestrais, ao divino – (Kami), ao elemento cósmico de transformação (Nirai Kanai), à natureza representada pelo bosque (Utaki), e aos túmulos coletivos da clã familiar, sem que tenha ligação com alguma religião.

 “A religiosidade é ligada a uma instituição. E a espiritualidade okinawana é ligada a alma, criando um forte vínculo social e familiar. Assim podemos verificar a dificuldade de um okinawano, em responder, por exemplo, a que religião ele pertence. Pois o costume de Okinawa é essencialmente espiritualista, não pertencendo a nenhuma entidade religiosa”, explica o especialista. “Porém no Brasil, os descendentes de Okinawa, na sua maioria, assimilaram o cristianismo como religião, não deixando de reverenciar os seus antepassados (Sosen Suhai), respeitando as antigas tradições da sua família”, completa.

 Ainda de acordo com Yonamine, como as antigas civilizações, Okinawa mantêm as mulheres, como porta voz espiritual, assim sendo as “Noro“ (sacerdotisas) representando a comunidade; e a “Yuta” (espíritas) dando orientação familiar, criando um diferencial entre a religiosidade e a espiritualidade.

 São as mulheres também as responsáveis pela limpeza do Totome, o oratório de Okinawa, pela oferenda de frutos e outros alimentos e pelo acendimento do senkô. Mas, assim como no Japão, a sucessão é patrilinear, ou seja, cabe ao filho mais velho (tchonan) cuidar do oratório dos pais. Assim, avô, pai e neto passam o totome entre as gerações. Logo, quem herda o oratório é o homem da família, mas quem cuida efetivamente é a esposa dele.

 “O oratório em casa, é um ponto de referência para reunir a família, porque representa a presença espiritual das pessoas já falecidas, os ancestrais. Quando alguém falece, a visita não vai ao cemitério, e sim vai orar na casa do falecido, a pessoa morreu mas a energia dele, permanece na casa onde morou”, detalha Yonamine. Que completa: “Na casa existem forças energéticas do ambiente e das pessoas, então, a casa aumenta sua representatividade na família, na medida em que as gerações representadas no oratório crescem”.

 O objetivo principal desta tradição, segundo o especialista, é obter uma referência espiritual, manter, e fortalecer uma relação social por meio da cultura familiar relacionando Pai e Filho, fazendo com que os descendentes voltem às origens.

Missas Memoriais

Capa3O culto aos antepassados é uma parte importante do budismo. Assim se realizam missas periódicas em memória do falecido. Na origem o correto ritual budista era a realização de cerimônias a cada 7 dias após a morte, até o 49º dia. Mas hoje em dia como familiares e amigos raramente conseguem atender várias cerimônias semanais, poucas famílias ainda seguem tal rito. A regra atualmente é realizar as missas de 7º e a de 49º dia após o falecimento. Tradicionalmente, após tais missas serve-se chá com alimentos leves. Confira o significado de cada celebração e quando ela deve acontecer:

 – 7º dia (shõnanoka): Considera-se que a evolução do falecido aconteça de 7 em 7 dias, ou seja, ele deixa o mundo em que vivemos e segue em direção a um estágio superior. No 7º dia celebra-se o cumprimento da primeira etapa de uma longa jornada;

 – 49º dia (shijuku-nichi): Após 7 semanas do falecimento, a pessoa já cumpriu todas as etapas e está pronta para o renascimento;

 – 100º dia (hyakkan-nichi): Nem todas as famílias realizam essa missa. Celebra o fim do período de concentração e treinamento;

 – 1 ano (isshu-ki): Tradição incorporada pelo budismo na China e significa o fim de um período de luto pelo falecimento.

As demais missas representam uma homenagem periódica ao falecido, celebrando sua evolução constante:

 – 3º ano (sankai-ki)

– 7º ano (shichikai-ki)

– 13º ano (jusankai-ki)

– 17º ano (jushitikai-ki)

– 23º ano (nijusanaki-ki)

– 25º ano (nijugokai-ki): Cerimônia não obrigatória, simboliza uma homenagem pelo transcurso de metade de sua caminhada.

– 27º ano (nijushitikai-ki)

– 33º ano (sanjusankai-ki)

– 50º ano (gojukai-ki): Na tradição japonesa, a celebração de 50 anos de falecimento era feita pelos vilarejos como um festival, por considerar que o falecido se transformará após o festival num Deus protetor daquela localidade.

– Após 50 anos: Acredita-se que o espírito do falecido perde sua individualidade e se funde com os espíritos de seus ancestrais em outro plano.

Na véspera

 Pela tradição, as cerimônias são realizadas sempre na véspera da data, ou seja, a missa do 7º dia será realizada no 6º dia, a missa de 49º dia será no dia 48º dia, a de 1 ano será alguns dias antes de completar um ano, a de 3 anos será no 2º ano… Isto porque costumam contar os dias ou ano do falecimento como 1, desprezando-se o zero. Pelo mesmo motivo, os japoneses costumam contar a idade a partir do nascimento começando do 1.

 Fonte: Site www.culturajaponesa.com.br

O culto na China

  “O culto aos antepassados na China remonta, como na maior parte das culturas e civilizações, aos primitivos tempos da humanidade, como um papel de destaque nas práticas animistas”, explica o historiador e mestre em relações interculturais, Fernando Sales Lopes, em seu artigo “Culto dos antepassados, festival Ching Ming”.

 Segundo Lopes, como em outras sociedades primitivas agrárias, dependentes da sobrevivência, da vontade desconhecida da natureza e dos elementos, também no território onde se fundou a China, a religião se centrava no culto aos antepassados, nos rituais da fecundidade, na adoração dos espíritos que acreditavam controlar as forças da natureza. “A prática do culto dos antepassados, na China, começa a estruturar-se a partir do segundo milénio antes de Cristo (aceita-se como marco de entrada da China na era da história a Dinastia Shang) até finais da Dinastia Han, a par com o desenvolvimento de conceitos religiosos e filosóficos como o taoísmo e o confucionismo”, revela.

 Para o historiador, pode-se dizer que o culto aos antepassados é a verdadeira religião chinesa, já que todas as outras vieram do exterior e, mesmo o Confucionismo e o Taoísmo – filosofias que em determinadas épocas assumiram estatutos religiosos – trataram as questões relacionadas com a morte e os antepassados de formas diversas ou difusas. “O Confucionismo, por exemplo, acabaria por abraçar a veneração dos ancestrais, como parte integrante da piedade filial, a sua grande virtude!”, relata.

 Lopes explica ainda em seu artigo, que a família é a unidade, daí a importância dos antepassados. Confúcio terá dito que enquanto os pais são vivos, devem ser tratados de acordo com um conjunto de cerimônias, ritos e modos, tal como quando morrem devem ser enterrados de acordo com essas normas, e venerados depois no além, respeitando-as. “A importância de um filho varão nas famílias chinesas é a garantia de que os pais terão quem trate deles na eternidade”, finaliza.